terça-feira, 30 de julho de 2013

"Resposta de Charles Miller"

No dia 26 de março, Paulo André publicou um texto, uma carta a Charles Miller, na qual contava da atual situação do futebol brasileiro. Ontem, ele publicou a resposta.

Caro Amigo,

A carta que me enviastes esteve perdida na caixa de correspondência do antigo clube em que eu trabalhava. Há alguns anos renunciei do cargo, estava cansado e me sentia incapaz de trabalhar com os jovens que chegavam por aqui pensando em dinheiro, carrões e ostentação. Além disso, havia inúmeras divergências externas que me impediam de promover a atividade ludopédica como fonte de educação e de inclusão social. Só que por coincidência, esta semana, recebi a notícia de que um tal Doutor havia reativado o funcionamento do campo de futebol do bairro e convocado antigos praticantes para uma prosa.

Eu fiquei atônito com tal informe pois a história que chegou até mim foi a de que, apesar do nome grego e pompa de sovietista, não eram seus discursos efusivos que convenciam velhos companheiros a voltarem ao trabalho, mas sim, os causos contados pelo Doutor sobre as barbaridades que aconteciam dos lados de lá. Disseram-me que as pessoas se amontoam para escutá-lo e se divertem com a imaginação do rapaz.

Confesso que estava descrente de que tal fato fosse real. Também pudera, depois de tantos anos e inúmeros novos moradores terem se frustrado ao tentar reiniciar a prática do jogo com os pés na nossa região, quais as chances de haver êxito desta vez?

Tratei de enfrentar meus demônios, deixei o orgulho de lado, criei coragem e fui até lá para ver o que estava acontecendo.

Ao me aproximar, ouvi o som estrondoso da sirene – uma antiga prática utilizada para celebrar a contratação de um novo reforço – mas tal honraria só era oferecida aos maiores jogadores de todos os tempos, e como eu estivera longe e nunca mais ouvira aquele fragor, não fazia ideia do que estava acontecendo. Por que estavam acionando a sirene? Ao chegar mais perto da festa, pude ver quem era carregado nos braços da multidão. Em questão de segundos, meus olhos se encheram de lágrimas, memórias dominaram a minha mente e eu vi uma das pessoas que melhor entenderam o que era praticar futebol e civilidade.

O Lord era ovacionado pelo povo e, muito à vontade, sorria de orelha a orelha como se há anos ninguém reconhecesse sua linhagem real. Parecia que não se lembrava da última homenagem que havia recebido em vida. Me questionei se isso poderia ser realidade mas duvido que alguém possa ter se esquecido de reverenciar os feitos de Djalma Santos, não é?

Voltei a mim enquanto a adoração e a peregrinação se estendiam ao círculo central do gramado. As pessoas pulavam, festejavam e gritavam o nome do Djalma. Era impossível chegar mais perto, havia um conglobado de gente dentre os quais pude reconhecer velhos conhecidos. Friedenreich, Garrincha, Leonidas e Dener eram os mais felizes, como sempre. Heleno de Freitas treinava em volta do campo, alheio a toda aquela manifestação. E eu, contrariado por não poder me aproximar por conta do povaréu, tratei de seguir na direção oposta, rumo ao antigo vestiário do clube. Como ainda não havia feito contato visual com o tal Doutor, desconfiei que ele pudesse estar lá dentro.

Atrás da mesa, envolto por livros, papéis e bitucas de cigarro, estava Sócrates, o Brasileiro, sorrindo, como se estivesse me esperando há muito tempo. Ele abriu os braços e pronunciou algo com um canto da boca enquanto o outro sustentava seu cigarro. “Por que demorou tanto? Temos muito para conversar, sente-se”.

Antes que eu pudesse reagir, ele atirou sobre mim uma carta.

“Isso daqui é para você” – continuou o Doutor – “Ela chegou há alguns meses e como reconheci o nome do remetente, resolvi guardá-la. Acho que você deveria responder. O pessoal de lá precisa, mais do que nunca, de bons conselhos”. Respondi de forma automática, quase me defendendo de minhas próprias frustrações: “Sócrates, faz 60 anos que me afastei das coisas de lá. Tudo mudou, os interesses são outros, os objetivos me parecem sombrios e pouca gente consegue aplicar os conceitos originais do jogo na fomentação de sua prática”.

Meus olhos partiram para baixo, meus ombros se encolheram e o meu corpo não disfarçou a tristeza que havia dentro de mim. Como você bem sabe, eu havia devotado uma vida inteira à disseminação do jogo com os pés, eu amava aquilo. Mas as notícias que chegavam nos últimos 30 anos me fizeram desistir de acompanhar ou de participar das discussões acerca do futuro do futebol brasileiro. Ainda cabisbaixo perguntei: “Não havia um senhor que estava há mais de 20 anos no comando da Confederação e que nem se importava com o futebol ou com o povo? Como deixaram isso acontecer?”

O Doutor sorriu, percebendo que a nossa conversa seria longa e estimulante e pediu para que eu lesse a carta com tranquilidade enquanto ele sairia em busca de algo para beber. “Temos muito o que conversar e tempo é o que não nos falta por aqui, não é?’. Antes da porta se fechar, escutei: “Vinho ou cerveja?”.

E foi assim, nobre colega, que tua carta chegou até mim.

Desde então, nosso querido Sócrates fez uma revolução aqui e criou um grupo que tem se reunido todas as tardes, após os treinos, para discutir futebol, sociedade e política. Aproveitei esses encontros para pedir ajuda aos companheiros pois confesso que tive dificuldades para compreender o português utilizado por ti. Não fazia ideia do que era entretenimento e muito menos quanto valiam esses bilhões de reais em moeda antiga.

Me comprometo a enviar a próxima carta na semana que vem pois é quando o Sr. João Saldanha voltará de viagem e se sentará conosco. O Doutor pediu para que ele fosse até as montanhas convidar o Sr. Lauro Müller para falar sobre o memorando que ele escreveu e que resultou no que conhecemos hoje como CBF. Você deveria se juntar a nós qualquer dia desses para sentir a energia do lugar.

Voltarei a procurá-lo em breve, meu querido Paulo André, e manteremos contato à distância, pelo menos por enquanto.

Cordialmente,

Charles W. Miller

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